por Kenia Cordeiro
revisão: Clovis Roman
O Moonspell é uma banda audaciosa. Com uma discografia sólida, com álbuns cantados em inglês, o grupo aprofundou o conceito de música como arte e trabalhou em 1755 o terremoto que abalou as estruturas físicas e sociais de Lisboa no século XVIII. E para cantar um capítulo marcante da história de Portugal, nada mais justo que confeccionar as letras em sua língua natal: o português. A música, soturna, arrastada e com momentos de apoteose, coroa esta obra.
A tragédia que acometeu Lisboa e redondezas em 1755 foi um dos fenômenos naturais mais fortes do planeta. Segundo o historiador Willian Funke, pesquisador em questões portuguesas, além de três tremores de terra consecutivos, um tsunami e um incêndio de grandes proporções devastaram a idade e causaram profundas transformações, não apenas nos alicerces físicos das edificações, mas também na estrutura social e religiosa. Explicações para o desastre foram levantadas, incluindo a hipótese de que seria uma mostra da furiosa justiça divina. Na parte prática, a reconstrução modernizou toda a estrutura urbana, sendo feitas ruas mais largas, com regras mais rígidas de construção e até mesmo a criação de um sistema de esgoto eficiente. Vale frisar que o Brasil, na época ainda colônia de Portugal, enviou valiosa ajuda financeira ao país europeu.
Conversamos com o vocalista Fernando Ribeiro sobre o conceito do álbum, os planos do Moonspell e sobre os shows que farão no Brasil (confira o serviço abaixo).
O Moonspell sempre traz mudanças a cada novo álbum. Extinct era mais agitado, e 1755 é mais denso. Esta densidade sonora é relacionada ao conteúdo lírico?
Fernando Ribeiro: Tem tudo a ver com a história que se quer contar ou com o conceito que se quer trabalhar. A nossa música é sempre feita como uma trilha sonora de um script que não vira filme mas vira disco. Esse script é o conteúdo lírico.
Como surgiu a proposta lírica de 1755? Quando a banda decidiu por este tema, chegaram a cogitar cantar estas músicas em inglês ou a ideia sempre foi fazê-las em português?
Fernando: Nunca pensamos no inglês para este disco. A condição de o gravar era mesmo usar o português, para sermos mais genuínos com a história e mais fiéis ao que se passou. Na verdade, todo o disco 1755 foi pensado como uma experiência para o ouvinte. Nos países em que se fala português há um maior proximidade, mas nos países que falam outra língua, o uso do português em vez de afastar os fãs, adicionou à experiência. O que foi muito curioso para nós.
E por que resgatar e regravar “Em Nome do Medo”, e ainda mais, usá-la para abrir o disco?
Fernando: O tema original do disco Alpha Noir foi crescendo em mim. Tinha muitas outra experiências com o português em “Opium”, “Fullmoon Madness” ou “Alma Mater”, mas este era um tema de Metal cantado em português, que soava com outra alma. Sempre pensei neste tema como a primeira pedra caída do terremoto de 1755. Assim, convidamos o orquestrador Jon Phipps para fazer uma versão mais clássica, e ele compôs uma peça tremenda, que usamos como ‘intro’ do disco e dos shows, como o terremoto a chegar à cidade.
Um ano após o terremoto, o Brasil enviou um navio com ouro e itens de valor em geral para ajudar o país na reconstrução. Fazer uma releitura de um clássico do Paralamas do Sucesso – “Lanterna dos Afogados” – seria uma espécie de resgate histórico, de inserir o Brasil dentro do tema do álbum?
Fernando: Há tanto interesse em música, novela, cultura e fofoca brasileira, quanto um profundo desinteresse e desconhecimento da História do Brasil [N. do R.: Não apenas dos portugueses, mas dos brasileiros também]. Um certo negacionismo por culpa “colonial” de como, durante séculos, Portugal, a metrópole, dependeu financeiramente do Brasil (em particular) e de outras (ex) colônias portuguesas. Por acaso, a música do Paralamas, em especial a letra e o tom melancólico, mostra o quão próximos os países podem ser, com uma história muito ligada ao Mar, à tragédia dos pescadores, ao povo meio perdido nas ruas ou nas águas do oceano. É uma letra bela. Quando Lisboa tremeu foi o princípio do fim do Império e com o Brasil a liderar, um século depois, mais ou menos, o povo irmão se tornava independente e Portugal retomava a sua luta para não ser esquecido ou “castigado” outra vez.

O desastre gerou questionamentos no coração do povo lisboeta: houve quem dissesse que se tratava da justiça divina, por conta de comportamentos depravados; outras foram ao sentido contrário, afinal, para eles não se poderia associar a tragédia ao castigo divino, uma vez que foram atingidos adultos e crianças, homens bons e maus indistintamente. Qual sua visão sobre este impasse em específico?
Fernando: O terremoto de Lisboa não se consegue entender de uma só perspectiva. A ciência confirma agora que foi um desastre natural, o maior terremoto de sempre no território europeu, entre os dez maiores do mundo. Mas, na altura, a ciência era apenas um rumor longínquo para a maioria dos Portugueses. A sua realidade era dura e opressiva, sendo a Igreja Católica e a Coroa as maiores responsáveis por essa opressão e miséria. A Igreja ainda tentou que o terremoto fosse um ato de vingança de Deus, mas na verdade houve homens esclarecidos (como Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal) que impediram isso de acontecer e tomarem as decisões políticas acertadas para reconstruir Lisboa e salvar os feridos. A minha visão é que o terremoto mexeu com a fé das pessoas, isso é inegável. Mais que a fé, o povo deixou de ser temente a Deus, o céu já lhe tinha caído sobre a cabeça, não tinham nada a perder.
Quais foram as mudanças estruturais e políticas que o desastre trouxe a Portugal?
Fernando: Várias e importantes. Não é demais dizer que a tragédia trouxe progresso. Houve finalmente uma passagem (tardia) de uma estrutura feudal, religiosa e opressiva para algo mais humanista. Os primeiros esgotos de Lisboa foram construídos nessa altura, melhoraram a habitação dos cidadãos (que também morreram por suas casas serem miseráveis), reconstruiu-se Lisboa quase inteira, e deram-se os primeiros passos para o fim do Império. Acabou a Inquisição e a Companhia de Jesus. Portugal renasceu.
[N. do R.: A Companhia de Jesus é referente aos jesuítas, uma ordem religiosa miliciana com fins missionários, de acordo com seus interesses]

Em Extinct vocês trabalharam com o produtor Jens Bogren, mas com 1755, voltaram a trabalhar com seu parceiro de longa data, Tue Madsen. A que se deve a este retorno? Buscaram resgatar alguns elementos dos trabalhos anteriores com esta decisão?
Fernando: Nem por isso. Este disco pelas suas características musicais pedia um som mais aberto, mais poderoso, “in your face”. Algo diferente da filigrana de sons e melodias de Extinct, no qual o Jens fez um ótimo trabalho. É um dilema, pois ambos são nossos amigos e excelentes produtores. Mas é um bom dilema, e contamos com ambos para novas produções.
Mariangela Demurtas (ex-Tristania) e Carmen Susana Simões (ex-Ava Inferi/Earth Electric) farão os shows com vocês nesta turnê pelo Brasil ou o trabalho delas é mais restrito ao estúdio mesmo?
Fernando: E também Silvia Guerreiro, a terceira voz deste pequeno agrupamento que abrilhanta os discos de Moonspell desde o Night Eternal, e que nós chamamos de Crystal Mountain Singers. Infelizmente não temos orçamento para as levar em tour. Mas tocamos muitas vezes em Portugal com este coro e é uma experiência magnífica.
Em 2016, durante a tour do Extinct, vocês estavam a planejar o lançamento de um DVD ao vivo, que seria gravado em sua terra natal, mas este material acabou não saindo. Será que poderemos ter um registro ao vivo, em vídeo e áudio, da atual turnê dos Moonspell?
Fernando: Já está gravado e será lançado por meados de julho. Chama-se Lisboa Under the Spell. É um concerto grande para 4000 fãs lisboetas e de todo o país e mundo (inclusive fãs brasileiros, que voaram especialmente para a ocasião). Reúne 3 concertos num só, já que temos Wolfheart, Irreligious e Extinct tocados na íntegra. Foi uma grande produção, com muitos efeitos e convidados. Correu tudo bem e penso que os fãs vão gostar muito deste longo documento visual da banda. Contém ainda um documentário sobre a vida da banda nos dias antes de um grande espetáculo, algo mais próximo e íntimo, a não perder.
Ainda sobre um novo lançamento em vídeo, pensaram já em colocar nele o show da banda no Rock in Rio no Brasil, 2015? Aquele foi um show icônico, que espalhou o nome da banda pelo Brasil.
Fernando: Seria bom mas provavelmente complicado a nível de direitos (risos). No nosso único DVD (Lusitanian Metal, 2010) tem cenas dos shows do Rock in Rio Lisboa, onde tocamos duas vezes. Mas o novo DVD “só” tem cenas do nosso concerto em Lisboa, são mais de 3 horas, porém. Quanto ao Rock in Rio, o original, foi muito foda tocar lá. Nós, na adolescência, vimos pela TV Queen, Guns, Iron Maiden (quem não tem esse DVD?) e nunca imaginamos fazer parte desse festival um dia. Foi muito bom tocar, cantar com o Derrick, tocar versões do Sepultura. Foi um dia ótimo no Rio, e penso que mostrou Moonspell a muita gente no Brasil.
Como será a seleção do repertório dos shows no Brasil? Já pensaram em tocar o novo álbum na íntegra
Fernando: Mais que o repertório, o que é importante é a energia do show e a história e a experiência passarem para o fã de um modo impactante e que fique guardado na memória, excitando sentidos e mente para a observação e participação no concerto. O 1755 tem esse dom teatral e estamos preparados para o tocar na íntegra. Existem, claro, “clássicos” que vamos integrar, para assinalar essa união com os fãs através dessas canções. Mas na verdade não gostamos muito de repetir alinhamentos e muita coisa pode entrar ou sair, mas o 1755 estará sempre em força.
Em 2015 vocês tocaram no Brasil e contaram com a participação da Mizuho Lin (da banda Semblant) no show na cidade de Curitiba. Agora em 2018 há algum plano de se repetir esta parceria?
Fernando: Infelizmente não vamos para Curitiba e não sei se a Mizuho poderá viajar ou não. Fato é que ela é uma cantora tremenda e tem um estilo impecável, e acho que pode ser uma das grandes vozes do Metal Sinfónico no feminino. Não sei como essa banda não faz sucesso na Europa ainda e não vem aqui em tour, ou que alguém os trabalhe como deve de ser no velho continente. São bem melhores que muita banda consolidada aqui, têm grande qualidade.

No álbum anterior, Extinct, algumas canções tem seus contrapontos: “Doomina” e “Domina”; “The Past is Darker” e “The Future is Dark”, “The Last of Them” e “Last of Us”, “Until We Are No Less” e “Breathe (Until We Are No More)”. Estas músicas, que saíram como faixas bônus, foram concebidas já com este propósito: o de serem contrapontos?
Fernando: Essas leituras das músicas pertencem ao Pedro Paixão que gosta muito de eletrônica ambiental e concebeu esse Re-Extinct para os fãs que gostam dessa onda.
Fernando, na última vinda da banda, você aproveitou para lançar no Brasil o livro Purgatorial. Pensas em trazer algum novo artefato literário ao país na próxima turnê?
Fernando: Sim. Vamos apostar de novo no Purgatorial e tentar com que a nova biografia dos Moonspell (Lobos que foram Homens) seja editada no Brasil antes da tour. Esse livro saiu agora em Portugal, da autoria do jornalista Ricardo S. Amorim. É um livro muito foda, com toda a história da banda, ex-integrantes falando, como foi crescer em Portugal e enfrentar a estrada por todo o mundo. Um ‘must’ para qualquer fã da banda.
Há planos próximos para o Orfeu Rebelde (projeto paralelo de Fernando Ribeiro e Pedro Paixão, que lançou um EP, Cada Som como um Grito, em 2009), como o lançamento de um novo disco ou shows
Fernando: Não. Orfeu Rebelde foi apenas um trabalho de uma vez. Gostámos muito de o fazer principalmente por musicar e vociferar o grande Miguel Torga [N. do R.: Escritor português, morto em 1995] mas nada mais. O Moonspell ocupa todo o tempo 😉 Em todo o caso devemos lançar o Orfeu Rebelde em vinil LP este ano.
Qual artista ou banda você gostaria que um dia gravasse uma cover do Moonspell? Podes citar artistas mais próximos ao estilo do Moonspell e também outros de diferentes estilos musicais.
Fernando: Hahahaha. Tantos. Eu lancei esse desafio ao Dani de Cradle of Filth. E na verdade gostaria de ver o Cradle mexendo com nossa música. Noutros estilos tanto gostaria que o Nick Cave fizesse a “Everything Invaded”, com piano e voz, como os Nine Inch Nails uma versão electro de algo do Sin. Um homem pode sonhar.
Na despedida, Fernando ainda deixou um recado especial aos fãs brasileiros: “Grato pela entrevista, vamos fazer o Brasil tremer! Há uma luz no túnel dos desesperados…”.
Shows no Brasil
O Moonspell virá ao Brasil no final de abril para quatro apresentações. Confira as informações de cada um dos shows:
Rio de Janeiro/RJ
Data: 25 de abril de 2018 (quarta)
Local: Teatro Odisseia
Endereço: Avenida Mem de Sá, 66
Ingressos: R$ 110 (2º lote)
Venda: pixelticket.com.br/eventos/1875/moonspell-no-rio-de-janeiro
São Paulo/SP
Data: 26 de abril de 2018 (quinta)
Local: Carioca Club
Endereço: Rua Cardeal Arcoverde, 2899
Horários: 19h30 (abertura da casa) / 21h (show)
Ingressos: a partir de R$ 120
Venda: www.clubedoingresso.com/moonspell-sp
Recife/PE
festival Abril Pro Rock
Data: 28 de abril de 2018 (sábado)
Ingressos: a partir de R$ 55
Venda: www.sympla.com.br/abril-pro-rock-2018__251566
Belo Horizonte/MG
Data: 29 de abril de 2018 (domingo)
Local: A Autêntica
Endereço: R. Alagoas, 1172 – Savassi
Ingressos: a partir de R$ 108
Venda: ticketbrasil.com.br/show/5762-moonspell-belohorizonte-mg


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