Por Luís S. Bocatios
No dia 23 de outubro, há exatos trinta anos atrás, o The Smashing Pumpkins lançou o álbum duplo Mellon Collie and the Infinite Sadness. Mesmo com a expectativa descomunal que havia se formado para o disco, que era baseada no ótimo Gish e no monumental Siamese Dream, o quarteto de Chicago não se intimidou e lançou um dos trabalhos mais ambiciosos, grandiloquentes e até pretensiosos das últimas décadas.
Segundo Billy Corgan, líder da banda, sua vontade era de fazer “o The Wall da nossa geração”, uma obra que capturasse a totalidade da experiência emocional da juventude: raiva, beleza, confusão, amor, perda. Para isso, Corgan — que assina todas as composições do disco — pescou algo em praticamente todas as suas referências. Passeando entre o brutal e o belo, o simples e o complexo, o progressivo e o pós-punk, o compositor entrega o testamento definitivo de quem ele é como artista.
Para dar conta de todo esse material, foi necessário lançar um álbum duplo no qual o conceito do primeiro CD seria “Dawn to Dusk” (do amanhecer ao entardecer) e, do segundo, “Twilight to Starlight” (do crepúsculo à madrugada), representando um ciclo completo de emoções e atmosferas como uma jornada existencial.
Tudo isso já começa a ser transmitido na capa, que apresenta uma imagem surreal e romântica: a pintura de uma mulher sentada em uma estrela dourada enquanto flutua no espaço. Criada por John Craig, a arte mistura colagens vitorianas e elementos celestiais, refletindo o tom melancólico, grandioso e onírico do álbum, transmitindo a ideia de um universo emocional vasto e introspectivo, exatamente como a música presente nos CDs.
A formação continuaria a mesma dos dois primeiros álbuns: Corgan na guitarra e nos vocais, D’Arcy Wretzky no baixo, James Iha na guitarra e ocasionalmente no vocal e o fenomenal Jimmy Chamberlain na bateria. Ao contrário do que aconteceu em Siamese Dream, que foi gravado quase inteiramente por Corgan e Chamberlain, as contribuições de D’arcy e Iha foram estimuladas pelo vocalista.
Com uma formação incrivelmente bem estabelecida e entrosada, o quarteto entrou no estúdio em março para cinco longos meses de gravação sob a batuta dos produtores Flood e Alan Moulder, que assinaram a produção do disco ao lado de Billy Corgan. O resultado… bom, são duas horas de êxtase para qualquer fã de rock.
Faixa a Faixa
Assim que o disco começa, ouvimos a faixa-título, uma música instrumental apenas com piano e um majestoso arranjo de cordas, que já é suficiente para emocionar qualquer um — se o disco tivesse apenas essa introdução, já seria suficiente. Ela engata no clássico imortal “Tonight, Tonight”, uma das melhores representantes do dream pop em todos os tempos, combinando elementos atmosféricos, melodias etéreas e uma abordagem introspectiva na letra e na sonoridade.
A banda e o brilhante arranjo de cordas constroem uma ambientação quase fantasiosa, digna de um daqueles sonhos dos quais a gente não quer acordar. Com uma letra que fala sobre a inevitabilidade da passagem do tempo, a música carrega um tom esperançoso e até edificante que assegura seu lugar como uma das canções definitivas da década de 1990.
O clima melancólico é jogado para longe com o peso da destruidora “Jellybelly”, uma das melhores do disco, e da clássica “Zero”, que dispensa apresentações. Em seguida, “Here is No Why”, outra das melhores, tem um riff estranhíssimo mas hipnotizante e um refrão explosivo que emociona a qualquer um. Mesmo figurando entre as menos famosas do disco, certamente está entre as favoritas de todos que conhecem o trabalho a fundo.
O primeiro “arco” do álbum termina com o hit “Bullet With Butterfly Wings”, cuja abertura com Corgan sussurrando “the world is a vampire” é icônica. Em seguida, temos uma das melhores performances da carreira de Chamberlain, que domina todas as diferentes dinâmicas da música com uma autoridade tremenda.
O primeiro momento mais cadenciado do álbum vem com a balada “To Forgive”, que é bonita mas esquecível. A porrada volta a comer solta com “An Ode to No One”, que é boa mas um tanto quanto desconjuntada, com uma parte quase à capela no meio da música que comprova o espírito explorador que dominava a banda na época.
Em seguida, “Love” vai para um caminho que remete a Depeche Mode, chegando a soar como uma música que poderia estar no fabuloso Music for the Masses, que a banda britânica lançou em 1987. Duas outras baladas um tanto quanto genéricas são “Cupid de Locke” e “Galapogos” — a segunda é melhor e conta com uma das performances vocais mais emotivas da carreira de Billy Corgan.
Já “Muzzle” traz uma das letras mais pessoais e, ao mesmo tempo, universais do álbum. O instrumental também é fantástico, com destaque para viradas majestosas de Jimmy Chamberlain. As últimas duas músicas do CD 1 exibem uma influência enorme de bandas dos anos 1970: “Porcelina of the Vast Oceans” tem uma longa introdução calma e descamba em uma das maiores porradarias da carreira da banda, que entrega nela uma de suas melhores músicas.
Já “Take Me Down”, a última música do CD 1, é claramente inspirada por músicas mais calmas que o Pink Floyd fazia em álbuns como Meddle e Obscured by Clouds, desde a harmonia até os vocais de James Iha, que apresenta um timbre surpreendentemente similar ao de David Gilmour em músicas como “Fearless”, “A Pillow of Winds”, “Burning Bridges” e “Mudmen”.
O CD 2 começa com a energia lá em cima: a magnífica “Where Boys Fear to Tread” e a ótima “Bodies” chegam a flertar com o metal, com um timbre de guitarras que parece formar uma parede sonora e mais duas performances avassaladoras de Chamberlain — algo que, a essa altura do campeonato, já começa a soar como um pleonasmo.
Em seguida, mais duas baladas guiadas pelo violão: “Thirty-three” e “In The Arms of Sleep” demonstram a influência que nomes como Neil Young e Joan Baez exerceram na formação musical de Corgan.
A partir daí, temos uma sequência inacreditável: “1979”, um dos maiores sucessos da banda, dispensa apresentações — é uma homenagem lindíssima à sonoridade pós-punk do ano referenciado no título da música e poderia estar em The Head on the Door, a obra-prima que o The Cure lançou em 1985. A composição é banhada em uma nostalgia quase palpável que transforma a canção em uma experiência emocionalmente carregada para qualquer um que a escute.
“Tales of a Scorched Earth”, por sua vez, é a música mais pesada da carreira da banda, com sobras para a segunda colocada. Se o álbum flertava com o metal em outros momentos, aqui o flerte já se transformou em um casamento com três filhos. Gravada de forma muito mais abafada que no restante do disco, a música é uma das principais jóias escondidas de Mellon Collie e deveria ser recuperada pela banda em shows ao vivo.
Como se trata de um dos discos mais ecléticos da história do rock, é claro que esse clima viria seguido de um contraste quase inacreditável. Milissegundos após a última batida da música anterior, tem início outra das obras-primas de Corgan. Trata-se da estupenda “Thru the Eyes of Ruby”, que exibe influências fortíssimas do rock progressivo tanto na composição, repleta de partes diferentes, quanto no timbre dos instrumentos e na performance vocal de Corgan, que criam uma atmosfera etérea brilhantemente contraposta pelas partes mais pesadas da música.
“Stumbleine” é outra balada acústica, mas com uma melodia muito mais inspirada do que as outras, exibindo uma enorme influência de Nick Drake. Já a ótima “X.Y.U” engata novamente a quinta marcha, mesmo que tenha partes mais lentas ao longo de seus sete minutos. É a última quebradeira do álbum e uma das melhores, com um solo de guitarra dissonante e muito louco.
A partir daí, o álbum toma um caminho diferente, com músicas calmas e melodias menos melancólicas do que anteriormente. “We Only Come Out at Night” é mediana, “Beautiful” é outra que remete a Depeche Mode, e “Lily (My One and Only)” é muito bonita e lembra, de longe, uma melodia que Paul McCartney poderia escrever em McCartney, de 1970, ou Ram, de 1971.
Já “By Starlight” é uma das baladas mais bonitas dos anos 1990 e, de fato, soa muito como o final de uma noite tão mágica quanto este disco. Logo, “Farewell and Goodnight” — clara referência ao final do White Album, dos Beatles, outro álbum duplo lendário do rock — soa como um epílogo e até como um retorno ao mundo real, após mais de duas horas em um universo tão único e imersivo quanto o que nos foi apresentado por Billy Corgan, Jimmy Chamberlain, James Iha e D’Arcy Wretzky.
Em um mundo cada vez mais dominado por algoritmos, músicas que não podem passar dos três minutos e que parecem cópias umas das outras, a importância de uma obra como Mellon Collie and the Infinite Sadness se torna ainda maior, visto que sua ousadia, sua grandiosidade e até sua prepotência se tornaram raríssimos no cenário atual do rock.
